Recife, 22 de fevereiro de 2012,
Quarta-feira de Cinzas.
Quarta-feira de Cinzas.
“Você abandonou o seu primeiro amor. Repare onde você caiu. Converta-se e retome o caminho de antes. Caso contrário, se não se converter, eu chego e arranco da posição em que está o candelabro que você tem” (Ap 2, 4- 5).
Queridos irmãos e irmãs da nossa Igreja de Olinda e Recife,
Essas palavras do livro do Apocalipse podem bem servir para nos estimular comunitariamente como Igreja e, particularmente, como cristãos/ãs e ministros de Deus, nesse tempo favorável, que é o Ciclo pascal (Quaresma e Páscoa), desse ano da graça de 2012. Como vocês sabem, o livro do Apocalipse, depois da visão que o profeta João teve do Cristo ressuscitado em um domingo (cap. 1), contém sete cartas ou mensagens que o Senhor lhe dita para as Igrejas. Essas pequenas comunidades eclesiais da Ásia Menor, situadas na periferia do Império e em meio a um mundo não cristão, representam as Igrejas do mundo inteiro, cada qual em sua diversidade, merecendo uma mensagem própria a partir de seu contexto histórico e em que etapa se encontra no caminho da fé. Dessas, a primeira comunidade eclesial é a Igreja de Éfeso, cidade importante da Ásia Menor, atual Turquia. A carta ditada pelo Cristo para a comunidade de Éfeso reconhece que se trata de uma Igreja bem organizada e fiel. “Conheço a sua boa conduta, o seu esforço e sua perseverança” (Ap 2,3). Porém, logo o Senhor se sente obrigado a dizer: “Mas tenho uma coisa contra você: ter abandonado o seu primeiro amor”. Na Bíblia, “o primeiro amor” é aquele sobre o qual o profeta Jeremias fala: “Assim diz o Senhor: ‘Lembro-me, a favor de ti, do entusiasmo da tua juventude, do amor do teu tempo de noivado, quando me seguias pelo deserto e vivias em uma terra não semeada’ ” (Jr 2,2). Também através do profeta Oséias, Deus propõe a Israel: “Eu vou atraí-la e a conduzir novamente ao deserto. Ali lhe falarei ao coração. (…) Ali, ela me responderá como nos dias de sua juventude, como no dia em que eu a tirei da terra do Egito. Naquele dia, diz o Senhor, ela me chamará ‘meu esposo’ e não me terá mais como um ídolo” (Os 2,14-16).
Percebemos que tanto os profetas do primeiro testamento como o livro do Apocalipse se referem ao tempo do primeiro amor ou ao entusiasmo da juventude da comunidade, como sendo o período do Êxodo, especificamente o processo da libertação do Egito e do caminho pelo deserto. Então, não é por acaso que, desde os tempos antigos, a Igreja sempre dedica o primeiro domingo da Quaresma ao evangelho das tentações de Jesus no deserto. Precisamos, então, aprofundar o que, para nós, na nossa Arquidiocese, hoje, significa voltar à mística do deserto e à espiritualidade do Êxodo, para retomar o primeiro amor de nossa Igreja.
Esse tempo de retiro quaresmal e de festas pascais nos chama para nos desacomodar. Segundo o Apocalipse, a comunidade de Éfeso era muito observante e fiel, mas lhe faltava a mística, tinha perdido o encanto do primeiro amor, “o fervor que tínhamos no começo da vocação”. Muitas vezes, os padres e agentes de pastoral se sentem “pessoas especializadas em Deus” e esquecem que ele não se deixa nunca possuir e quer que o busquemos intensa e permanentemente, como a razão de ser de nossas vidas. O Deus da Bíblia sempre se manifesta na busca do seu reino. “Buscai primeiro o reino de Deus e sua justiça e tudo o mais vos será dado em acréscimo” (Mt 6, 33). A contemplação e a busca de Deus nunca podem ser desligadas da preocupação com a justiça e a vida em sua integridade. Retomar o primeiro amor foi justamente o apelo do papa João XXIII, quando, há 50 anos, convocou o Concílio Vaticano II e o inaugurou propondo a todos os bispos e fiéis que o Concílio fosse para a Igreja e para cada católico um novo Pentecostes. Ele propôs que, para “voltar ao primeiro amor”, a Igreja deveria seguir sempre dois critérios até hoje muito atuais: 1º) a volta às fontes da fé; 2º) o aggiornamento ou o cuidado de expressar e celebrar a fé de um modo acessível às pessoas do nosso tempo. João XXIII insistia que, mesmo as mais veneráveis tradições deveriam ser revistas a partir desses dois critérios: se se ligam realmente ao Evangelho e se são acessíveis à humanidade de hoje.
Nós temos a graça de pertencer à Igreja no Brasil, uma Igreja que, no mundo inteiro, foi pioneira em colocar o Concílio Vaticano II em prática e, a partir de Medellin, soube atualizar e adaptar para o nosso país o esforço da renovação conciliar. A nossa Arquidiocese assumiu esse caminho da inculturação e se pôs em diálogo com o mundo desde os tempos de Dom Carlos Coelho. Entretanto, o grande profeta dessa abertura foi mesmo Dom Helder Camara. Ele soube unir uma profunda espiritualidade a uma preocupação permanente de falar ao coração do homem e da mulher de hoje. Sem excluir ninguém e acompanhando a todos os movimentos e grupos católicos, Dom Helder conseguiu colocar em prática a opção preferencial pelos pobres, dando força e apoio às pastorais sociais e ao acompanhamento dos movimentos populares. Retomar esse apoio hoje e viver a mística que eles propõem não seria, hoje, o nosso modo concreto de viver a espiritualidade do Êxodo, a caminhada da libertação?
Hoje, os tempos são outros e é normal que nosso método de trabalho tenha mudado, mas todos sabemos que a desigualdade social e as injustiças não somente não acabaram, como até se agravaram mais do que nas últimas décadas do século passado. Os organismos internacionais afirmam que a humanidade atingiu a marca dos sete bilhões de pessoas, das quais ao menos um bilhão vive em estado de desnutrição ou subnutrição. Não porque faltem alimentos. Ao contrário, o mundo nunca produziu tantos alimentos, mas a fome se agrava porque aumenta o número dos pobres e esses não têm como comprar. Os pobres continuam a ser explorados, sobretudo no mundo do trabalho. Na região de Suape, por exemplo, a situação dos trabalhadores é terrivelmente injusta e precária, conforme pudemos constatar em recente matéria do Diário de Pernambuco intitulada: “Os filhos de Suape”, e o relatório do Movimento dos Trabalhadores Cristãos, antiga ACO. A pergunta que fica no ar e deve ser respondida, pessoal e comunitariamente, é a seguinte: como, a esses irmãos e irmãs que vivem essas situações, podemos testemunhar o amor de Deus e a sua preferência pelo pequenino e sofredor?
Antigamente, nas comunidades eclesiais e religiosas, o bispo ou superior costumava no começo da Quaresma indicar um livro para que a comunidade de fé e cada irmão o lessem e aprofundassem, especialmente no tempo quaresmal. Na regra para os monges, São Bento retoma esse costume e propõe que o abade indique para cada irmão ou irmã um livro da Biblioteca que, naquele tempo, possuía especificamente livros da Bíblia ou dos santos pais antigos. Recordando, hoje, esse costume, gostaria de propor a vocês que nesse tempo de Quaresma e Páscoa, cada padre, diácono, seminarista, religiosa, religioso, leigas e leigas possa ler ou reler e meditar três documentos dos 16 do Concílio Vaticano II. Penso especificamente na Constituição Dogmática sobre a Igreja (Lumen Gentium), na Constituição Dogmática sobre a Palavra de Deus (Verbum Dei) e a Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo de hoje (Gaudium et Spes).
Nossa Arquidiocese está preparando o seu plano de pastoral para os próximos anos. Diversos encontros e reuniões já foram realizados para que esse plano seja elaborado a partir do diálogo e da participação de toda a nossa Igreja. Nesse plano, necessitamos concretizar nosso apoio e abertura para as pastorais sociais como um modo espiritual de retomar a mística do Êxodo e de ser fiel à caminhada própria da Igreja em nosso continente. Que possamos atualizar, em nossa Arquidiocese, a palavra que os bispos latino-americanos propuseram ao querer traduzir o espírito do Concílio Vaticano II: “Que se apresente cada vez mais nítido, na América Latina, o rosto de uma Igreja autenticamente pobre, missionária e pascal, desligada de todo o poder temporal e corajosamente comprometida na libertação de todo o ser humano e de toda a humanidade” (Medellin 5,15a).
Que a celebração quaresmal e pascal de 2012 seja para nós um sacramento de conversão profunda de nossas vidas a esse projeto divino. E o Cristo ressuscitado, como dizia São João Crisóstomo, fará de nossas vidas, mesmo no meio das lutas e das dores, uma festa permanente.
Dom Antônio Fernando Saburido, OSB
Arcebispo de Olinda e Recife
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